quarta-feira, janeiro 04, 2006

As couves não têm graça nenhuma

Com a chegada do mês de Dezembro, multiplicam-se as boas acções e gente que é gente fica orgulhosamente amiga e compreensiva para com os problemas do mundo e da sociedade. Não é de estranhar que a malta, imbuída dum carácter altruísta e sincero, tenha uma mórbida necessidade de juntar amigos, colegas e familiares a uma mesa para repastos infindáveis de bom comer e beber. Nesse sentido é frequente uma pessoa, sem dar por isso, gastar grande parte do seu pecúlio monetário em comilanças alarves que pouco dignificam o espírito de partilha pelos mais desfavorecidos subjacente a esta tão prestável época. Época de amor, compreensão, amizade e esperança.
Foi pois, apesar de todas as vicissitudes que esta altura do ano me inspira, com especial agrado que me juntei a colegas de trabalho para a almoçarada/convívio aqui do burgo, onde se papou um belo e bem servido cozido à portuguesa, tido em grande conta pelos habitués da tasca ali da esquina.
“Aquilo é que é um cozido. Não comes um cozido daqueles em mais lado nenhum.”
Juntaram-se uma dúzia de almas, contas feitas por alto, e a alegria parecia reinar por todos aqueles que petiscavam os queijinhos e as manteiguinhas postas na mesa para enganar o estômago enquanto o prato principal estava a apurar. A sangria também teve o seu sucesso, muito embora, para o refinado paladar de alguns, se apresentasse com pouco açúcar, como se já não fosse suficientemente criminoso estragar um vinho com gasosa e fruta, quanto mais enfiar à bruta um quilo de açúcar na mixórdia.
“Vê lá, não achas que está com pouco açúcar. Assim fica mais forte ou não?”
Com a chegada dos enchidos o frenesim aumentou de tom e com ele a espiritualidade dos convivas que se entreteram a elevar o nível das conversas com tiradas de extremo bom gosto e oportunismo:
“Aí vem o chouriço, não há nada como um chouriço num cuzido.”
As gargalhadas iam e vinham, aumentando ou diminuindo de tom consoante o maior ou menor apuramento das chalaças atiradas para a mesa:
“Queres este chouriço de sangue? Ouvi dizer que gostas dos chouriços pretos. Oh Raquel, toma lá o preto! O teu namorado não é ciumento pois não?”
E assim se foi passando a horita e meia, que a entidade patronal nos concedeu amavelmente para enchermos o bandulho e a alma com as graçolas de uns e de outros.
“Digo-te uma coisa, não é que não goste dum bom chouriço, mas uma boa orelha e uma bela língua faz-me ir aos céus. Então uma língua e um chouriço, ui ui.”
E para os mais vegetarianos:
“Então não gostas de carnes? Isso só de comer só cenouras não dá nada. Ainda por cima cozidas, elas cruas é que são boas. Ficam duras. Toma lá esta carne da pá. A comer boas carnes, só da pá. Gostas da carne da pá ó Aníbal?
E responde o Aníbal com cara de quem já não vai trabalhar nada da parte da tarde:
“Para mim, desde que a carne seja tenrinha, marcha, mas muito tenrinha não que ainda vou preso.”
E marchou. A carne, a sangria, os enchidos, o arroz e as couves. Houvesse outro tanto que tinha o mesmo fim. Quanto a mim fiquei satisfeito.
“Oh Mafalda, estiveste tão calada hoje, não gostaste do cozido? O chouriço caiu-te mal? Se calhar tinha muita gordura. Às vezes são gordurosos.”
Nem na conta a piada fácil esmoreceu:
“Dez Euros a cada um. Tou cheia de tanto chouriço, vou passar a tarde a arrotar a enchidos. Não há fome que não dê em fartura. Espero que hoje à noite o meu Manel não se ponha com as ideias malucas dele.”