quarta-feira, maio 17, 2006

Planalto

É com elevado agrado que aproveito as pontes que, de quando em vez, me são facultadas pela entidade empregadora. Os meus ilustres chefes, gente que amiúde me habituei a estimar tanto no bem como no mal, anunciam sempre com grande pompa e circunstancia a súbita benevolência aos funcionários. Fazem-no com um ar de quem salvou o mundo dum ataque do Bush e aproveitam sabiamente a ocasião de grande contentamento generalizado para mostrar alguma pedagogia a todos que os escutam:
- Como tem sido normal nestes casos, esta ponte só foi possível graças ao contributo dum funcionário que sempre nos habituou a um elevado rendimento e que faz constantemente elevar a fasquia da produção nesta instituição. São funcionários como Hugo Carvalho que nos fazem sentir orgulhosos de ocuparmos um cargo de chefia e de podermos, ano após ano, subir os ordenados de todos.
Os meus colegas, sentidos, desfazem-se em aplausos e mostram sorrisos brilhantes aos meus agradecimentos. É uma situação que me deixa bastante constrangido devido à minha timidez e faço um esforço enorme por conter as lágrimas. Sou um sentimentalista, eu sei, mas desde pequeno que assim sou!

Isto tudo para dizer que sempre que estas coisas acontecem e tenho uns dias a mais do que é normal, gosto de ir para o Alentejo, terra bonita e onde as pessoas são um portento de simpatia e parecem ter sempre alguma história para contar mesmo que só lhes perguntemos as horas.
Desta vez escolhemos uma quinta perto de Beja. Normalmente fazemos turismo rural. Gostamos da paz e do som dos bichos das quinta alentejanas. É a imagem mais perto do paraíso que tenho na cabeça, excluindo as de teor sexual que, evidentemente por respeito aos leitores, não as vou revelar aqui neste pequeno espaço familiar.
Como seria de esperar, o calor extremo que assolou o país na véspera, transformou-se em frio severo e em queda de chuva incómoda no dia em que parti de Lisboa para iniciar a tão aguardada campanha alentejana. Não era nada que eu não esperasse. A minha sorte já é conhecida até nas estrelas e não há um só santo que me consiga valer em situações como esta. Por isso, habituado a condições difíceis, passei os primeiros dois dias a ler, sentado numa cadeira, a perscrutar a chuva a cair lánguida no planalto. A água batia na terra e cheirava bem. As nuvens grossas cinzentas tornavam o campo ameaçador.
Ao contrário do que esperava, para quem tinha esperança de passar o tempo todo a passear e a visitar ruínas romanas, gostei bastante desses momentos de quietude. Com tão pouca coisa para fazer, aproveitei e dormi a sesta. Já não recordava a última vez que o fizera. Adormeci com o canto dos pássaros e acordei com o mesmo som. Também havia galinhas e galos a passear e a falarem uns com os outros com algum alarido, mas não o suficiente para desestabilizar a minha paz.
Um dos grandes momentos deste fim de semana foi sem dúvida o pequeno almoço que nos foi servido. Era constituído com coisas do campo. Sumo de laranja docinho e saboroso, bolo de Amêndoa que só Deus sabe o bom que estava, compota caseira de chorar por mais, pão alentejano acabado de sair da lenha e queijinho saboroso da região. Tais alimentos faziam o estômago ronronar de contentamento.
-Isto aqui é outra vida!
-Ai pois é, ai pois é! Pena é a chuva e o frio, mas amanhã, dizia o jornal, o tempo vai mudar. Vai ficar calor e já podemos passear um bocado.

-Anda cá já Mariana! Para quieta! Tá quieta ou ainda levas uma trolitada!
Foi-se a chuva e veio o sol. Mas com o sol veio também o infortunado fado de todas as férias e de todos os momentos de descontracção.
Duas anónimas criaturas, de idade incerta mas escassa, faziam o favor de rasgar com as unhas cobertas de sujidade, a tão prestigiante paz do planalto. Gritavam, berravam, birravam, saltavam e nem para os animais e pais eram simpáticos.
-Tá quieta Mariana, não corras atrás da galinha!
-Tá quieto Tomás deixa estar a senhor o ler descansado!
Ao invés de acordar calmamente com o som melodioso dos pássaros acordei com a doentia gritaria das crias rebeldes.
Claro que o pequeno almoço delicioso e saudável, centro de algumas conversas entre mim e a minha namorada, foi brutalmente vandalizado pelas criaturas, nomeadamente o bolo e o sumo que nesse dia não provei.
Enquanto me controlava por não dar um murro nos cornos do Tomás e um pontapé no nariz da Mariana a minha namorada ia tentando acalmar a minha fúria, muito embora não fosse capaz de lidar com a situação:
-Odeio putos mal educados. Odeio todos os Tomás, os Afonsos, as Marianas e as Beatrizes. Vou-me embora daqui e é já.
E fomos.
Enquanto voltávamos para casa e atendendo aos recentes acontecimentos, tentei a minha sorte, como se não tivesse nada premeditado.
-Por acaso estive a pensar. Os miúdos são mesmo um inferno. Se calhar não era má ideia tirarmos da cabeça a concepção do nosso.
Mas a resposta, injustamente, veio cuspida com algum rancor:
-Deixa-te de merdas!
E lá fomos estrada afora cumprimentados por uma placa sorridente que gozava com a nossa cara.
"Obrigado pela vossa visita
Lisboa – 184 Km"