quinta-feira, maio 25, 2006

Criaturas

Isto de atender ao público tem muitas inconstantes e nunca se sabe muito bem como um simples atendimento vai correr. Sendo o meu trabalho um serviço social onde o estado garante alguma protecção aos mais necessitados, estou sujeito a enfrentar toda e qualquer criatura, da mais culta à mais abjecta. Guardo na memória, com saudade, alguns momentos deliciosos. São motivo de alarido e de algum sentimento de ternura para com o mundo e população portuguesa no seu geral.
Não posso passar em claro a senhora que cheirava tão mal que antes de se chegar ao balcão descarregava uma lata quase inteira de Brise para que nós, quando a atendêssemos, não desconfiássemos que não tomava banho há uma semana porque lhe cortaram a água à duas.
- Mas que raio de cheiro é este? Isto é o quê? Conheço o cheiro mas não sei o que é? Isto é o quê? Aloe Vera? É não é?
Não me esqueço, também, do senhor que se julgava mais do que era e, sempre que falava connosco, desdobrava-se num esforço hercúleo de linguagem de forma a que ninguém conseguisse perceber alguns problemas de expressão que tinha. Digo esforço porque o homem, coitado, enquanto se embrulhava no seu discurso suava a potes. O líquido escorria-lhe abundantemente por testa, mãos e face. Chamava-lhe carinhosamente o Fonte humana.
- Pois o meu processo, efectivamente, tem alguns problemas, nomeadamente no que respeita ao Sr Juiz, portanto, que escandalosamente não tem feito nada para a avançar as coisas, precisamente porque me tem tramado a vida, portanto, vejam lá se urgentemente me resolvem a coisa, designadamente no que toca aos meus interesses.
Havia também a outra, que cuspia enquanto explicava a sua situação deixando o balcão de atendimento uma vergonha, cheio de saliva, tendo de ser desinfectado com prontidão com lixívia do Lidl mal a mulher saía do edifício porque, teoricamente, a lixívia do Lidl é a mais forte.
Depois há os doidos varridos que, na minha opinião, são os mais interessantes porque o simples facto de falar com eles envolve algum risco. São criaturas extremamente sensíveis e uma má escolha de palavras pode desencadear um berreiro que termina, quase sempre, com acusações inconvenientes e fora de moda.
- Estão todos combinados, juizes, procuradores, advogados e a Pide! A Pide! A Pide não acabou, o sistema judiciário é a Pide! A Pide!
De todos os necessitados que me aparecem, estes são aqueles que nunca conseguimos solucionar o seu problema. Por isso a sua visita aos nossos serviços é constante e eterna e, claro, nem sempre bem vinda.
Existem, por outro lado, os silenciosamente calmos. Esses não aprecio particularmente porque não dizem nada. Limitam-se a chegar ao balcão, a entregar um papel qualquer, ficando de seguida feitos parvos a olhar para um gajo à espera dum milagre. Um gajo vai fazendo as perguntas da praxe para ver o que querem e eles lá vão abanando a cabeça para o sim e para o não consoante a resposta. Mesmo depois de serem devidamente esclarecidos continuam a olhar para um gajo naquilo que se torna um momento desconfortavelmente Zen. Eu sou particularmente sensível a estes momentos, voltando a repetir tudo de novo desde o início passando, muitas vezes, meia hora num monólogo descontrolado onde repita as mesmas frases umas 10 vezes. Sempre me senti mal nos silêncios, não consigo reagir a eles. Quando conhecia alguma mulher a minha preocupação era não deixar que o silêncio se apodera-se da nossa conversa. Podia acontecer tudo, mas silêncio é que não.
Mas desengane-se o leitor que achar que entre os funcionários aqui do burgo não existem os que, devido á sua singularidade, deixam de ter comportamentos estranhos.
O meu colega aqui do lado é bastante sensível ao facto das pessoas chegarem ao Balcão sem nada e, principalmente, sem o numero de Referência. Se algum tipo ou tipa que aparecer aqui sem o numero de referência tem de o ouvir a teorizar sobre as vantagens e as desvantagens de não trazer a dita referência. Que esse comportamento dificulta o trabalho dos funcionários e que tem de se andar à procura duma coisa que nem se sabe se existe. Que não pode ser, que as coisas não funcionam desta maneira e que o tempo que se perde na busca do numero de referência podia-se estar a adiantar o trabalho noutro sítio e que o trabalho é muito e se se perde tempo com as referências nunca mais saímos daqui.
Uma fita portanto. Mas nem sempre isso acontece. Porque entre as criaturas que descrevi, existem algumas que são mais criaturas que outras. Nomeadamente a Sra. do Processo laboral que parece saída dum filme sueco. Cheirosa, de seios comprimidos nas vestes, esbelta, com o cabelo louro, solto, e com uma simpatia que tomara muitas terem só metade. Os homens da secção param de trabalhar e alargam os sorrisos em sinal de cavalheirismo.
Mas quando a Sra. do Processo Laboral diz que se esqueceu do numero de referência, aqui o meu colega do lado deixa de parte os problemas do mundo e responde-lhe com uma simpatia desmedida:
- Deixe estar, não há problema, não se preocupe, eu procuro isto aqui num instante.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Tens alguma cunha na Segurança Social??? Pedi uma segunda via de um documento e disseram-me que demorava 10 dias!!! Socorro!!!

2:22 da tarde  

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