segunda-feira, abril 25, 2005

Crónica do Diabo IV

Depois dum fim de semana em que se comemorou a liberdade e em que as bandas filarmónicas de todo o país puderam, finalmente, tocar a sua música, o Desordem voltou ao ataque e também aproveitou para dar o seu contributo para os cada vez mais frágeis alicerces da democracia e da liberdade de expressão.
Assim, aqui fica a crónica do nosso mui respeitado cronista, Paulo Rinhonha, carinhosamente protegido pela malta e que, apesar dos esforços, mais nenhuma publicação o aceitou nas suas páginas. Ao que parece dá mau nome a tudo em que se mete. Aqui no Desordem, pelo contrário, tem o seu espaço imaculado, e pode dizer o que lhe der na gana porque nós não nos importamos. Na verdade até o incentivamos.
Hoje a melhor crónica de todas. Teoriza sobre os almoços e as doses e meias doses. Aproveitando o facto, nós aqui avisamos já as leitoras, porque apesar de tudo também fazemos serviço público, se quer mesmo perder peso para o Verão, meta-se à confiança na dieta Atkins, emagrece que é uma maravilha, mas vai andar tão mal disposta que ninguém lhe vai pegar!

Boa tarde,

Com a vossa permissão e permissidade, para uma breve descrição das maldades do mundo, tomo o espaço gentilmente concedido pelo meu amigo excelso editor, grafista, anti-hacker, cronista, não muito bem-vindo à terra em que nasceu, namorado da Melissa, ex-Hugo-dos-recibos-verdes, conhecido necrófilo e trabalhador-estudante
1º (embora ser funcionário da OA não possa em toda a sua extensão ser considerado trabalho, mas vá lá, oficialmente e para efeito de IRS, é);
2º (já nem me vou referir à parte do estudante, que cursos manhosos de História há ao pontapé e é lá que se encontra alguma da mais patética fauna das franjas parasitárias da sociedade).

Este caso de um ataque alvitrante ao mais básico direito humano, o de almoçar como deve de ser, deve ser exposto a todos na esperança de que, um dia, seja possível a todos os cidadãos almoçar como deve de ser.
O meu colega Barreiro, homem já com uma certa experiência de vida, andava a ficar muito chateado com a forma com que andava a ser servido no local em que, por vezes, tem o prazer da minha companhia.
É verdade, muitas vezes ele me diz "Que prazer é ter a companhia de alguém tão culto e sábio como tu, assim desta forma tão humilde, porque tu és uma daquelas raras pessoas que ilumina o mundo com a tua presença de espirito, além de seres um brilhante profissional, ainda que muito mal pago, e muitas vezes uso-te como exemplo para os meus amigos e filhos em como é possível sermos ser humanos de excepção a todos os níveis e manter uma postura de complacência nunca arrogante para com todos os outros, que olham para ti como um farol de sabedoria num mar de mediocridade corrosiva. Obrigado!"

Tudo se passou, e passa, na cantina de uma instituição privada de educação superior localizada no médio oriente de Lisabona.
No principio da semana, estávamos na fila da paparoca e já estávamos à espera de sermos servidos pela Paulinha, miúda nos seus vintes, de bata branca que deixa antever por baixo dela não ser nada de especial, não contribuindo desta forma para que a população masculina ali se desloque e não aumentando o número de refeições servidas pela patroa. Suspeito, por isso, que as razões pelas quais ela ali arranjou trabalho foram, por ordem de importância:
1. chamar a patroa de madrinha, o que nos leva a suspeitar que talvez exista ali algum grau de parentesco;
2. ser semítica.

As faces carcomidas pelo apetite, pelas longas horas que uma manhã leva a passar e pela espera, como cães que aguardam que os donos se dignem a atirar uns ossos, deixavam transparecer o quão presente todos os clientes daquele espaço tinham do absurdo da vida.
O Barreiro respirava pesadamente, enchendo o ar com o acre aroma de sucos gástricos em activação.
"Uma dose de entremeada, só com arroz, se faz favor!", pediu meio a torcer o nariz.
A Paulinha pegou num prato grande e nele espetou uns pedaços de entulho gorduroso e duas colheres de bagos de arroz coladinhos uns aos outros como se tivessem sido cozidos numa mistura de água-rás e cola branca para madeira.
No meio do prato, um monte longe de ser alto, nas bordas um vazio confrangedor. Se se despeja-se aquela quantidade num prato mais pequeno, dos usados nas meias-doses, ainda sobrava espaço.
Esta dicotomia entre as quantidades correctas para servir doses e meias-doses ocupava um bom espaço de tempo no pensamento filosofico-prático de Barreiro. Na sua tese de doutoramento, na Universidade do Hawai, já ele abordava a temática do serviço hoteleiro como indutor de expectativa e como envolvente da racionalização pragmática do homem-organismo.
"Dose, meia-dose, dose, meia-dose...", via-se a pairar num balão por cima da sua cabeça.
O Barreiro começou a bufar vapor pelas narinas, mas conseguiu aprisionar a vontade de espetar com o prato na parede e num tom duro mas contido afirmou:
"Ali a sua empregada, serviu-me muito mal!"
Ao que a patroa, seriamente consternada, respondeu:
"Então tá com sorte que hoje a comida tá uma merda!"
Pronto, o Barreiro ficou-se, impávido e lívido que nem folha de papel de fax.
Como referi, já viveu muita coisa, mas ainda nada o tinha preparado para tal situação. Com a ajuda de mais um colega, que também se via apanhado neste fado maldito, conseguimos arrastá-lo para a cadeira mais próxima. Não foi fácil fazer com que as suas pernas dobrassem, tal a rigidez cadavérica dos joelhos.

Foi então que se ouviu um estrondo e passado uns segundos uma estudante, prái de metro e setenta, talvez uns cinquenta oito kilos de peso, com uma camisola a mostrar o umbigo bem feitinho e umas calças de ganga clara justinhas de onde saltava uma barriguinha ainda mais engraçada do que o bem arqueado rabinho, de pele brilhante a dar pro escurinho, veio a dizer que tinha havido um acidente no cimo da rua. Colocámos um tabuleiro a segurar-lhe a cabeça e atrás dela fomos ver o que havia acontecido.
Como seria de esperar de autoridades responsáveis, a policia instalou uma operação de caça-multa mais ou menos a meio de uma longa recta. De forma a não atrasar os cidadãos, colocou a mesinha e o resto do estaminé junto a uma caixa multibanco. É com agrado que assisto à importância que as autoridades colocam no conforto dos prevaricadores, todos nós, perigosos foras-da-lei em potência.
Instalaram-se, também, e isso é um pormenor de escassa monta, mesmo a seguir a um cruzamento, de onde da esquerda descem carros de uma rua perpendicular. Outro fora-da-lei, quando o sinal vermelho em que estava parado abriu, espetou-se na traseira do carro que a policia tinha mandado parar. Um acidente, que como o nome indica foi um acidente, totalmente inesperado, que praticamente nem se consegue compreender como foi possível acontecer.
O facto da operação stop ser feita logo a seguir a uma curva não me causa estranheza nem me insulta a inteligência por aí além. O que indigna, de facto, é a colocação, ao calhas, de curvas antes dos locais em que se realizam Op-stop, demonstrando a falta de planeamento das obras públicas realizadas neste país.
Faço daqui um apelo ao governo e a outras entidades interessadas, inclusive bancárias, no sentido de proceder à deslocação de todas as caixas multibanco para longe de curvas, de cruzamentos e das roulotes de bifanas. Convém ter o mesmo cuidado em relação a removê-las para longe de esquadras, não vá essa proximidade tentar os agentes em se multarem a eles próprios e qualquer cidadão que vá apresentar queixa, evitando também apanhar um ou outro advogado ou rapaz da telepizza pelo meio.

Quando de manhã me dirigia para as cavernais instalações da empresa que me explora, vi um grupo que se distinguia por entre o fumo cinza da neblina matinal, quais zombies que abanavam um braço, com o que parecia ser catanas assassinas. Mais próximo, distingui a placa sinalizadora que hipnotiza condutores e emite radiações magnéticas nocivas ao motor, provocando assim a paragem de carros e motas, motociclos e mesmo viaturas de gama alta, desde que não sejam da pertença de órgãos sociais de um clube de futebol ou de autarca, ou filho/enteado de um deles.
O gangue de caçadores de multas, iniciou a conversa com uma demonstração de simpatia, sorrindo.. de desprezo.
"Você viu a velocidade a que vinha?", inquiriu o Policia/GNR/Capitão de Abril/Jovem arrogante vestido de azul-escuro/Chefe aqui desta rua que ali do outro lado estão a passar droga/Agente da autoridade desautorizado pelos tribunais.
Aqui várias opções de resposta se levantam.
"Não Sr. Policia, ainda é cedo e vinha com os olhos fechados!"
ou
"Vinha a 120, Sr. Policia, mas aqui costumo chegar aos 160!"
ou
"Desculpe, Sr. Policia, vinha aqui distraído a carregar esta caçadeira!"
Confesso que a cada dia que passa me vejo a desaparecer no etéreo, uma névoa que se desconjunta do que antes tinha sido um corpo e agora até os contornos perde.
Estou tão cansado e revoltado com o mundo à minha volta, que só penso em cobrir, cobrir alguém de porrada.
Tal é o estado de nervos em que ando, que ainda hoje fui parado pela policia a uns meros cem metros do local de trabalho.
Os meus colegas riram-se à fartazana, roçaram as partes no portão como que a dizer "tás fodido", fizeram-me gestos feios e pelos lábios chamaram-me paneleiro, mas eu é que ainda os hei-de afiambrar, ah pois é.
"Você viu a velocidade a que vinha?", inquiriu o Guarda Leiria, que já é conhecido da malta.
Exasperado, respondi:
"Ó Sr. Guarda, então eu peço uma dose e dão-me meia e o Sr. acha que eu tenho cabeça pra essa merda!"
Mas o que realmente estava a pensar, era:
"Sei, Sr. Guarda, mas mesmo assim a puta da Paulinha conseguiu escapar!"