terça-feira, março 29, 2005

Grande entrevista que esclarece tudo e mais alguma coisa

No café da manhã, a torrada escorrega do prato e cai no chão com o lado da manteiga virado para baixo. Quando se tenta escolher rapidamente umas meias no guarda-roupa, o par raramente combina. Na hora de fechar a porta, a chave correcta é uma das últimas do porta-chaves. Azar ou simples coincidência? Nem uma coisa nem outra, segundo o físico inglês Robert A.J. Matthews, 37 anos. Ele é um especialista nestes pequenos aborrecimentos diários que se tornaram conhecidos como produtos da tão afamada lei de Murphy, aquela segundo a qual, se alguma coisa tem raras hipóteses de dar para o torto, essa coisa, com toda a certeza, corre mal. Matthews transformou-se num cientista popular ao provar que a queda da torrada com a manteiga virada para o chão ou os pares de meia que não combinam são resultado de princípios elementares da matemática e da física. Formado pela Universidade de Oxford, já teve artigos publicados nas principais revistas científicas. Uma delas, Scientific American, estampou-o na capa em Abril de 2003.
Venceu nesse ano a 13ª edição do IgNobel que, além do estudo de Matthews sobre a Lei de Murphy, premiou pesquisas relacionadas à capacidade cerebral dos taxistas londrinos (Medicina), as forças necessárias para arrastar ovelhas (Física) e a uma investigação sobre uma estátua de bronze na cidade japonesa de Kanazawa incapaz de atrair pombos (Química).
Casado, pai de uma menina e dois meninos, Matthews mora com a família em Cumnor, pequena cidade do interior da Inglaterra, de onde deu a seguinte entrevista ao Desordem. Ficámos rendidos ao brilhantismo deste homem. Claro que o entrevistador não tem a mesma capacidade que o Mário Augusto (célebre entrevistador da malta de Hollywood) mas, coitado, lá se safou.

Desordem: Qual a origem da lei de Murphy?
Matthews: O autor dessa expressão, o capitão da Força Aérea americana Edward Murphy, foi a primeira vítima conhecida da sua própria lei. Em 1949, ele participava em testes sobre os efeitos da desaceleração rápida em pilotos de aeronaves. Para medir isso, construiu um equipamento que registava os batimentos cardíacos e a respiração dos pilotos. Certo dia, Murphy foi chamado para resolver uma avaria no equipamento e descobriu que havia um erro de instalação em todos os eléctrodos. Foi aí que ele formulou a teoria, segundo a qual, as pessoas sempre optam pela forma errada de construir determinado equipamento se houver duas maneiras diferentes do fazer. Na prática, era um bom princípio de engenharia de segurança, mas acabou por se popularizar com uma lei capaz de explicar os aborrecimentos do dia-a-dia. Como o próprio Murphy previra, havia duas formas de entender o seu princípio e as pessoas escolheram a errada.

Desordem: O senhor concorda que, quando alguma coisa tem possibilidade de dar para o torto, dá mesmo?
Matthews: Muitos dos aborrecimentos do quotidiano são bem mais frequentes do que gostaríamos. Em geral, estes aborrecimentos não são o resultado duma grande conspiração contra o bem-estar da humanidade, mas de princípios científicos simples. O problema é que, muitas vezes, os próprios cientistas não percebem isso e preferem acreditar que esses azares são produto da nossa memória selectiva, que nos faz lembrar mais facilmente dos episódios chatos do que dos felizes.

Desordem: Por que razão se interessou pela lei de Murphy?
Matthews: Comecei a estudar o assunto há uns três anos, depois de ler o relato de uma experiência de física numa revista científica. O artigo mostrava que, ao cair de uma mesa, um livro caía muito mais vezes com a capa virada para o chão do que para cima. Achei o resultado intrigante porque, do ponto de vista da lei das probabilidades, as chances de a capa cair virada para o chão deveriam ser de apenas 50%, uma vez que o livro só tem duas faces. Quando repeti o teste em casa, percebi que o resultado da queda de um livro a partir da borda de uma mesa não tem nada a ver com possibilidades matemáticas, mas com a acção da gravidade e um pouco de fricção. Dessa forma, desvendei também um dos princípios mais célebres da lei de Murphy, o da torrada que cai sempre com a face amanteigada voltada para o soalho.

Desordem: Como chegou a essa conclusão?
Matthews: Os meus testes mostraram que uma torrada, um livro ou qualquer objecto de formato semelhante têm uma tendência natural de cair de cabeça para baixo porque o torque gravitacional não é suficiente para que eles girem completamente sobre si mesmos antes de chegar ao chão. Isso quer dizer que, ao cair de uma mesa, a torrada nunca terá tempo de dar uma volta completa e atingir o chão com a manteiga para cima. A distância entre a borda da mesa e o solo só permite que ela dê meia-volta. Isso não tem nada a ver com azar, com o fato de um lado da torrada estar coberto de manteiga ou com a acção de algum gnomo invisível. É pura ciência básica. Se a distância entre o topo da mesa e o chão fosse maior, o resultado seria diferente e é provável que o lado da manteiga estivesse salvo.

Desordem: Nesse caso, a lei de Murphy só funciona em virtude da altura das mesas?
Matthews: Exactamente. Mas isso leva a novas perguntas: Qual a razão das mesas não terem uma altura maior? Porque isso não seria conveniente nem confortável à anatomia humana. E por que os seres humanos não são maiores de modo a permitir que as mesas sejam mais altas? Porque qualquer ser bípede e de forma cilíndrica como os seres humanos, não pode ter mais de 3 metros de altura. Pelas leis da física, acima desse porte ele correria risco de vida. Um homem ou uma mulher com 3 ou 4 metros de altura quebraria facilmente a cabeça numa queda. Para que uma torrada caísse com a face amanteigada para cima, seria necessário que a mesa tivesse acima de 2 metros de altura. Isso nunca será possível porque a adaptação dos seres humanos às leis da física impede que tenham estatura muito maior que a actual.

Desordem: O senhor quer dizer que as pessoas estão condenadas a ver sempre as torradas a cair com a manteiga para baixo?
Matthews: Uma solução seria passar a manteiga na face de baixo da torrada, mas isso iria complicar muito a vida das pessoas. Pode parecer estranho, mas se uma torrada estiver a cair da mesa, o melhor a fazer é dar-lhe uma pancada na horizontal. Isso vai aumentar a sua velocidade e impedi-la de virar. Não salva a torrada, mas evita ter de limpar a manteiga no chão.

Desordem: Em 1993, a rede de televisão BBC reuniu 300 pessoas para lançar torradas para cima e observar como caíam no chão. Só em metade das tentativas as torradas caíram com a manteiga para baixo. O que aconteceu de errado?
Matthews: Eles não fizeram o teste como deve ser. A situação proposta pela BBC era ridícula. Ninguém fica lançando torradas para o alto durante o café da manhã. As minhas experiências levaram em conta o que ocorre no quotidiano, quando a torrada escapa pela borda da mesa e vai direitinha para o chão sem a interferência de nenhuma outra força que não a da gravidade e a da fricção.

Desordem: Quando uma pessoa vai ao banco ou ao supermercado, geralmente sai com a sensação de que a fila escolhida era a mais lenta. Existe alguma explicação científica para isso?
Matthews: Pela lei das probabilidades, é sempre mais provável que você opte por uma fila mais lenta. Num supermercado com cinco caixas, as possibilidades de escolher a fila que, naquele momento específico, vai andar mais rápido que as demais é de somente 20%. Nesse caso, você tem 80% de chances contra si. É uma probabilidade bastante elevada. Significa que, em cinco chances, você tem quatro de entrar numa das filas mais lentas. Não se trata de azar, mas duma simples conta matemática. Se alguém observar o ritmo das cinco filas durante o dia inteiro, perceberá que, em média, todas andam na mesma velocidade. A sensação é diferente quando se entra numa delas num determinado momento do dia.

Desordem: E por que motivo quando se tenta abrir a porta de casa com um molho de chaves na mão, a chave que é necessária é sempre a última?
Matthews: As chances de que a chave correcta seja a primeira ou a última são exactamente iguais. As possibilidades de acerto, porém, diminuem de forma proporcional à quantidade de chaves no molho. Quem chega em casa depois de um dia de trabalho geralmente está cansado, quer abrir logo a porta e tem a esperança de acertar na primeira tentativa. Num porta-chaves com duas chaves, as chances de acertar são de 50%. Num molho maior, com dez chaves, a possibilidade diminui para apenas 10%. Ou seja, nesse caso há nove chances de erro contra apenas uma possibilidade de acerto. As chances aumentam bastante depois de feitas as cinco primeiras tentativas, quando resta menos da metade das chaves a ser experimentadas na fechadura. O problema é que, ao chegar a esse ponto, as pessoas já estão convencidas de que há uma conspiração do chaveiro, do universo e da matemática contra elas.

Desordem: Acredita em coincidência, sorte ou azar?
Matthews: Não, o que há são probabilidades matemáticas de que alguma coisa aconteça ou não. Veja o caso dos aniversários. Muitas pessoas espantam-se quando descobrem que outras nasceram no mesmo dia que elas, considerando que um ano tem 365 dias. Matematicamente, no entanto, isso é muito provável. Se você juntar um grupo de 23 pessoas escolhidas ao acaso, as chances de que duas façam aniversário no mesmo dia é de 50%. Para provar isso, estudei as datas de nascimento de 22 jogadores mais o árbitro de dez jogos de futebol na Inglaterra. Na teoria, eu deveria encontrar cinco aniversários coincidentes em cada partida. Acabei por achar seis, o que está dentro da margem de erro. Portanto, se você anda à procura de coincidências, certamente vai achá-las porque, nesse caso, a matemática está do seu lado.

Desordem: Outra regra da lei de Murphy diz que, numa gaveta de guarda-roupa, a chance de uma meia com par desaparecer é maior do que a de outra, solitária. Porquê?
Matthews: Imagine que você tenha uma gaveta com dez pares de meias. Por alguma razão, uma única dessas meias se perde. A questão é saber qual será a próxima meia a desaparecer. Usando um ramo da teoria das probabilidades chamado combinações, é fácil entender que se uma segunda meia se perder, é mais provável que será uma entre os nove pares completos do que aquela que está sozinha. Quando a terceira meia desaparecer, continua sendo extremamente mais provável que a próxima seja a de um par já formado. Se esse desaparecimento de meias continuar, na meio da história você vai ficar com somente dois pares completos e com outras seis meias avulsas.

Desordem: Quer dizer que é muito improvável que uma pessoa consiga manter uma gaveta com pares de meias completos?
Matthews: Sim, e isso tem sustentação científica. Numa gaveta com dez pares de meias, é quatro vezes mais provável que você algum dia acabe sem um único par completo do que com todos eles completos. Não há como fugir dessa fatalidade, a menos que você compre apenas dois tipos de meias, metade preta e metade azul, por exemplo.

Desordem: Por que quando alguém sai à rua com guarda-chuva geralmente não chove?
Matthews: (risos) Porque a chuva é um fenómeno mais raro do que se imagina. Mesmo aqui na Inglaterra, onde chove muito e o serviço meteorológico é considerado eficiente, matematicamente a possibilidade de chover em determinado horário é sempre menor que a de haver sol ou apenas céu nublado. No meu estudo, trabalhei com a possibilidade de chuva na hora do almoço. As pesquisas mostram que, nesse horário, chove apenas uma vez em cada dez dias chuvosos. Então, mesmo que o serviço meteorológico preveja chuva para amanhã, a possibilidade de que chova no exacto momento em que você sair à rua é, realmente, muito pequena.

Desordem: Além de criar curiosidades, que utilidade prática pode ter o estudo da lei de Murphy?
Matthews: É uma forma de tornar mais populares e didácticos os conceitos da física e da matemática. Quando você toma como exemplos situações rotineiras, como a queda da torrada e os pares de meias que não combinam, fica mais fácil explicar coisas que, do contrário, soariam demasiado abstractas. O estudo da lei das probabilidades tem aplicações práticas muito sérias e úteis. Serve, por exemplo, para tentar prever a proximidade de um terremoto. Grandes terremotos são fenómenos muito raros. A única certeza que se tem hoje é que, em algum momento, haverá um terremoto de grandes proporções em San Francisco, em Tóquio e na sua cidade, Lisboa. Isso pode acontecer no mês que vem ou nos próximos cinquenta anos. O estudo das probabilidades pode salvar milhares de vidas nessas cidades. Infelizmente, por enquanto, seria tão caro e improvável montar um serviço de previsões eficiente, que a melhor solução é investir o dinheiro em tecnologia de construção de edifícios que sobrevivam à catástrofe. O que, por manifesto azar, tanto para você como para todos os leitores do seu Blog, os construtores portugueses parecem não estar muito preocupados com a situação.

Desordem: Em 2003, o senhor recebeu o Prêmio Ig Nobel (junção satírica da palavra ignóbil com Nobel), atribuído de brincadeira pelos estudantes do Instituto de Tecnologia de Massachusetts a pesquisas consideradas inúteis. O senhor também se considera uma vítima da lei de Murphy?
Matthews: (risos) Eu acho que ganhei com a brincadeira. O Prêmio Ig Nobel foi anunciado poucos dias antes e ganhou tanto destaque na imprensa inglesa que acabou ofuscando o verdadeiro Prêmio Nobel (risos alarves). Talvez porque seja mais fácil entender as torradas que caem da mesa do café da manhã do que a teoria de superfluidos do gás hélio, a pesquisa premiada com o Nobel de física nesse ano.

Desordem: Na sua vida pessoal, as coisas costumam correr bem ou dão para o torto?
Matthews: Algumas correm bem e outras tantas nem por isso, como na vida de qualquer pessoa. Ninguém pode levar a lei de Murphy à letra e achar que ela é culpada por tudo que de ruim acontece. Se o seu carro se ficar quando você estiver atrasado para um encontro, é muito provável que a culpa seja sua porque deixou de levá-lo ao mecânico, e não do capitão Murphy. Afinal, na maioria das vezes o carro não quebra o tempo todo. Os meus estudos sobre a lei de Murphy fazem sucesso porque mostram às pessoas que a ciência pode ser algo divertido e próximo do nosso dia-a-dia.