terça-feira, agosto 30, 2005

Modernices I

Trinta em trinta dias a história repete-se. Se há altura em que me sinto verdadeiramente vivo e em que escorrem pelas minhas veias as ordinárias sensações mundanas é no princípio de cada mês.
Presumo que a maior parte das pessoas que incompreensivelmente está a ler este post nunca sentiu semelhante coisa, mas ainda está a tempo, se tiver coragem para isso, de aproveitar as prodigiosas maravilhas que a vida teima em nos oferecer.
Seja como for, para quem não está familiarizado com os transportes públicos, existe uma coisa, que não é mais do que um papel autocolante a que chamam passe social, que faz as delícias diárias de miúdos e graúdos suburbanos e urbanos.
Pois bem, o passe tem a validade de um mês e serve para se poder utilizar diariamente e, à vontade, os transportes públicos lisboetas. A sua vantagem em relação a um bilhete normal é que, como é bom de ver, sai mais barato e é mais prático.
Como Portugal, e muito bem, gosta de se modernizar procedeu-se, há coisa de um ano e meio, à substituição dos passes sociais. Não do pedaço de papel autocolante, que muda todos os meses, mas do cartão de plástico onde, como parece lógico, o autocolante se cola.
A ideia era efectuar o mais rapidamente possível a troca dos cartões de identificação pré históricos sem chip pelos cartões de identificação com chip. Para isso o utente teria apenas de pagar 5 euros e estar, como é apanágio nestas coisas, 3 horas numa fila:
“Eh pá! Mas isto anda ou não anda? ...isto é uma vergonha! Obrigam as pessoas a terem o passe e depois é isto. Mas ao fim do mês sabem receber o dinheiro. Isso sabem eles, levar o dinheiro às pessoas. Vá lá, pelo menos não estão em greve. Isto está num estado que só visto...”
Também eu, homem de parcos recursos mas ciente das vantagens da modernização, me apresentei na estação de atendimento do Arco do Cego, posto que efectuava a respectiva troca, para assegurar o quanto antes o novo cartão de utilizador. Na longa espera houve quem não aguentasse a pressão e caísse para o lado:
“Ai Jesus, ai Jesus! Tragam depressa água à Senhora. Água à senhora.”
E inocentemente esperando que os pobres também tenham direito ao seu milagre de quando em vez:
“Há algum médico aqui. Algum médico que acuda?”
De certa forma, enquanto via a senhora a cair para o lado e ser reanimada pelos presentes, reparei na proximidade entre as filas de serviços públicos e os juramentos de bandeira em quartéis. Se é para dar prova da resistência física e psíquica, não sei quem leva mais vantagem se o recruta se o desgraçado do cidadão que recorre ao atendimento público.
Mesmo sem médico presente, lá se conseguiu, a muito custo, despertar do desmaio a senhora caída.
“Está bem? A Senhora está bem? Isto é um calor que não se pode. Não há ar condicionado, não há ventoinhas, não há nada. Não há nada. Ainda matam alguém aqui. A senhora quer ir lá para fora apanhar ar fresco? Venha lá para fora comigo apanha ar fresco. Venha lá.”
A senhora lá foi apanhar o ar fresco. Inspirou-o dos escapes e do óleo rançoso dos fast foods e voltou mais contente. Contando com a minha extraordinária e simpática benevolência foi logo atendida. Ninguém queria que acontecesse novamente o mesmo susto:
“O Senhor não se importa que esta senhora passe à frente? É que lhe caiu a tensão…”
Ora esta benevolência fez-me ser atendido pela velha repugnante em vez da mamalhuda sem futuro a quem eu já andava a topar os gestos há três horas. Além de ser mais lenta nos seus afazeres, mostrava um decote afável para quem esteve 3 horas numa fila. Mas quis Deus que me calhasse a velha a tresandar a tabaco e de unhas amareladas:
“Não me diga que não tinha em casa uma fotografia em que parecesse melhor. Já viu a sua figura aqui…francamente…ficou com cara de parvo.”
Depois olhou para mim, olhou para a fotografia, abanou a cabeça:
“...Pois...”

3 Comments:

Blogger O Arquivista said...

Meu caro,

Um convite expresso e formal não se recusa. Por isso resolvi fazer uma visita à des-ordem que por aqui grassa.
(...)
Depois de lidos alguns dos posts que afixaste percebi que o lugar-comum sobre a gramática (que dá conta da sua personalidade traiçoeira) tem razão de ser. Assim, percebido o erro sintático, apresso-me a corrigi-lo. Recomecemos, do zero:
(...)
Um convite expresso e formal não se recusa. Por isso resolvi fazer uma visita à des-ordem que por aqui graça. Fico contente em saber que as misérias quotidianas não são um exclusivo meu e, melhor notícia ainda, que me posso rir delas em vez de chorar.
Lamento ter perdido o primeiro ano de vida da criança, mas o ónus da responsabilidade vai todo para ti, que mantiveste um silêncio sepulcral a esse respeito. Mas fica desde já prometido que, pelo menos todas as sextas-feiras, passarei por aqui para fazer uma consulta. Ainda para mais sendo gratuita e dispensar a ida para filas em busca de autocolantes.

Ah! Já me esquecia. Agradeço a publicidade gratuita aOs dias escorrentes. Mas, principalmente, agradeço o olhar atento que por lá relanceias e as palavras que lhe dedicaste.

Abraço

10:55 da manhã  
Blogger Pedro said...

Passe social...já abandonei essa realidade à alguns anos.E não tenho saudades....

4:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ao contrário de um tal pedro ( q desconfio sei quem é ) :-) ...uso oo passe social e gosto. 30 mil vezes melhor do que o carro para o centro de lisboa.
Em relação à cara... temos de nos habituar a ver as coisas pelos olhos dos outros.
Cumps

12:31 da tarde  

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