quinta-feira, agosto 25, 2005

Cabelo

Uma das coisas que gosto menos de fazer é de ir cortar o cabelo.
Quando era mais novo fazia-o no barbeiro lá da esquina, no salão do Sr. Ribeiro. Quer dizer, o Sr Ribeiro chamava àquilo salão para parecer melhor, mas na realidade o espaço não passava dum cubículo mal ventilado a tresandar a laca. Tinha, contudo, nas paredes, uns calendários que na minha inocência muito me fascinavam. Mamalhudas, semi vestidas, de fato macaco, a pousar ao lado duma pilha de pneus e com uma chave inglesa na mão. Muito eu gostava nos meus 12 anos de olhar para aquilo. Ainda para mais o homem tinha montes de calendários desse tipo porque nunca os mandava fora. 1982, 1983, 1985, enfim um coleccionador. Chegava Janeiro e começava logo a pressionar a minha querida mãe:
“Mãe, posso ir cortar o cabelo? Vá lá!”
O Sr. Ribeiro era um tipo baixinho, de bigode, impecavelmente penteado que costumava ter sempre um cigarro aceso ao canto da boca, preferencialmente enquanto desbastava a trunfa aos clientes. Fumava feito louco. O negócio corria-lhe que era uma maravilha. A casa estava sempre cheia e em média, qualquer gajo que quisesse usufruir dos seus serviços tinha de esperar, pelo menos, cerca de duas horas. Geria tudo sozinho. Falava com os fornecedores enquanto enfiava a tesoura na guedelha de quem estava a ser servido e não eram raras as vezes em que firmava negócios, á vista dos clientes, de lâmina em punho e cigarro na boca.
“Traga-me lá então duas caixas para a semana. Mas das azuis, que as verdes não valem nada.”
A especificidade que mais gostava do Sr. Ribeiro era que fazia o mesmo corte de cabelo para todos. Máquina 4 dos lados, risco ao lado em cima e meia patilha. Nem valia a pena pedir outra coisa. Os clientes habituais já nem diziam nada. Sentavam-se na cadeira e esperavam que o Sr. Ribeiro fizesse o serviço.
Os novatos ainda se armavam ao pingarelho:
“Quero escadeado, com poupa mas não me corte muito dos lados.”
Máquina 4 dos lados, risco ao lado em cima e meia patilha.
O risco ao lado do Sr. Ribeiro era a única coisa de Moscavide que podia ser vista das estrelas. Cada vez que o fazia, pegava a escova numa mão, o secador na outra, cuspia o cigarro da boca e começava a enrolar o cabelo na escova enquanto lhe dava com o ar quente do secador de forma a fazer um montinho com o cabelo. Era um parto com dor. Todos os clientes sentiam o que era levar com o ar quente do secador durante 20 segundos na cabeça. Era uma dor silenciosa, contida até à exaustão. Em 31 anos de vida, juro, que nunca vi um risco ao lado tão vincado como aquele.
E se alguém dissesse, como eu:
“Deixe estar, eu vou mesmo assim com o cabelo molhado.”
Respondia logo:
“Tás parvo ou quê? Agora vais assim todo despenteado...”
Quando finalizava o trabalho, O Sr. Ribeiro pegava no seu espelho, mostrava ao cliente o seu trabalho e perguntava:
“Está bom?”
O cliente dizia que sim, claro, e o Sr. Ribeiro, muito calmamente, ia buscar a sua laca com uma senhora de cabelo armado impressa na lata e descarregava meia embalagem no montinho que construía para não ser destruído por nenhum tufão que, eventualmente, pudesse ocorrer. Todo este processo era acompanhado por um sepulcral silêncio entre os presentes.
O cliente pagava, saía, o Sr. Ribeiro pegava num cigarro, acendia-o, colocava-o ao canto da boca e para a plateia anunciava:
“Próximo!”

Foi por essas e por outras que deixei as barbearias e comecei a procurar senhoras cabeleireiras que abraçaram a profissão depois de terem sido despedidas dos seus empregos na ressaca dos anos 90.
Perguntei à minha querida mãe:
“Mãe, por acaso a tua cabeleireira corta o cabelo a homens?”
Felizmente cortava.
Mas a experiência de cortar o cabelo numa cabeleireira, ao contrário do que pensava, é enriquecedora a todos os níveis. Tá bem que se paga um balúrdio mas em compensação um gajo recebe uma massagem capilar da loira mais bem feita a trabalhar no salão; além de que, se pedir os serviços da pedicura e da manicura, fica rodeado de loiras por todos os lados que até parece que está a realizar uma qualquer fantasia sexual.
“Então aquela (a empregada da loja de roupa da avenida principal) não andava metida com o patrão. Acho que foram para França passar uma semana. Ficou a loja fechada e tudo. A mulher dele já não mora com ele. Levou os filhos e foi para o Porto viver com a irmã.”
Há outras coisas que também gosto e que me dão animo para os afazeres do meu dia a dia, como da outra vez em que a loira que lava as cabeças às clientes diz:
“Já viram este aqui. O ciclista. Este Amstrong que teve cancro e ganhou a volta à França. Isso é que é. Respeito imenso estas pessoas. O Hugo, é Hugo não é o seu nome? Pois, o Hugo também anda de bicicleta não anda. Tem as pernas tão bem feitas, que até parecem ser de ciclista....”
Desprevenido, corei e sorri envergonhado.
Quando ia a caminho de casa, encontrei a minha vizinha Joana a sair do carro que, mal me viu, cuspiu uma monumental gargalhada:
“Que raio de cabelo é esse. Coisa horrível. Pareces um cantor dos ABBA. É certo que te cortam sempre mal o cabelo, mas desta vez exageraram. Onde é que foste? Não me digas que ainda pagaste! És mesmo tótó!”