Praia III
Para mim, praia faz-me lembrar o melão. Não o cantor, benza-o Deus, mas o fruto.
Quando era pequeno passava um mês inteiro na Fonte da Telha. Era um lugar horrível para se fazer férias, sem condições nenhumas, com ruas pejadas de lama, mas que era o refúgio de todos aqueles que não tinham dinheiro para ir para o Algarve. Há uns 15 anos atrás, se bem se lembram, ir para o Algarve era a mesma coisa que chegar o céu depois da morte. Era um símbolo de Status que todos ambicionavam, um pouco como há meia dúzia de anos eram os telemóveis. Ainda me recordo na alegria das pessoas quando iam lá para baixo. Claro que, num meio proletariado e mal pago, quem conseguisse poupar uns cobres para ir lá para baixo sentia-se o rei do mundo, subia-lhe o Status logo à cabeça que era uma maravilha. As mulheres, como seria de esperar, aproveitavam logo a deixa:
“Este ano vou para o Algarve. Estou farta da Fonte da Telha.”
E quando voltavam:
“Ah, a vizinha nem queira saber a maravilha que é aquilo. A água está sempre quente, as praias todas limpas, não é pouca vergonha da Costa da Caparica. Outra coisa é que está sempre calor. Para o ano vou para lá outra vez. Mais vale dar mais qualquer coisinha e estar num lugar em condições. E então, a vizinha? Foi outra vez este ano para a Fonte da Telha?”
Bem ouvia depois as queixas da minha mãe para o meu pai:
“...deve, deve ter a mania que é mais que as outras.”
Mas fossem como fossem as ambições de cada um, a Fonte da Telha tinha cinema de barraca onde pude apreciar os loucos filmes de terror do fim dos anos 80 e especialmente, o Exorcista, que não é desse período, mas que teve o mérito de me iniciar na roda viva das insónias:
“Então, não dormes? Raios partam o miúdo que não prega olho à uma semana.”
E além do cinema, a Fonte da Telha tinha a insuspeita ciência da escolha do melão.
A base desta ciência é que é uma erudição completamente fora do alcance das mulheres. Toda a gente naquela terra partia deste dogma. Neste contexto, eram os homens que assumiam a compra do melão. Abanavam, calcavam, batiam, ouviam e escolhiam. Todo este ritual era sempre acompanhado pelos filhos que observavam com atenção os passo dos progenitores. Dizia-me o meu:
“Quando ouvires este som oco, assim como este, tás a ouvir? Então é porque o melão está maduro. Não tem nada que enganar.”
Mas o Sr. Ilídio, o pai do Nuno, tinha opinião contrária:
“Não senhor, o som oco, pelo contrário, quer dizer que o melão nem para ao passáros serve.”
Qual deles tinha a razão nunca ninguém o soube. Mas posso garantir que para a mesa tanto vinham melões verdes como maduros. No entanto quando eram verdes, o meu pai, e contra a opinião generalizada da família, afirmava:
“Este melão não está bom? Mas vocês estão a gozar comigo? Este melão é delicioso. Não percebem nada disto. Para a próxima escolhem vocês.”
E depois começava a comer fatias feito parvo até não sobrar nenhuma.
“Tava mesmo bom o raio do melão.”
Mas isto tudo a propósito da Mafalda ter parado o carro quando vínhamos da praia porque tinha visto uma barraca de melões à beira da estrada:
“Escolhe-me aí um melão. Percebes alguma coisa disso? Mas olha que é a sobremesa do jantar que vos vou oferecer lá em casa.”
Olhei-a de lado, ofendido, peguei num melão ao calhas e comecei a bater-lhe:
“Tás a ouvir este som oco? Cada vez que o ouvires é porque o melão é bom. Não tem nada que enganar. Por acaso sempre soube escolher melões.”
A Mafalda convenceu-se da minha sapiência e nem sequer desconfiou o que lhe é raro.
Comido o jantar, ela abriu o melão e a mesa ficou silenciosa:
“Dizes tu que sabes escolher melões, bela porcaria o que escolheste.”
Peguei numa fatia e comi-a deslumbrado:
“Querem vocês dizer-me que este melão não presta, é isso? Está delicioso. Mas para a próxima escolhem-no vocês. Agora a sério, não querem? Vocês é que sabem, mais fica para mim. Um melão tão bom...”
Quando era pequeno passava um mês inteiro na Fonte da Telha. Era um lugar horrível para se fazer férias, sem condições nenhumas, com ruas pejadas de lama, mas que era o refúgio de todos aqueles que não tinham dinheiro para ir para o Algarve. Há uns 15 anos atrás, se bem se lembram, ir para o Algarve era a mesma coisa que chegar o céu depois da morte. Era um símbolo de Status que todos ambicionavam, um pouco como há meia dúzia de anos eram os telemóveis. Ainda me recordo na alegria das pessoas quando iam lá para baixo. Claro que, num meio proletariado e mal pago, quem conseguisse poupar uns cobres para ir lá para baixo sentia-se o rei do mundo, subia-lhe o Status logo à cabeça que era uma maravilha. As mulheres, como seria de esperar, aproveitavam logo a deixa:
“Este ano vou para o Algarve. Estou farta da Fonte da Telha.”
E quando voltavam:
“Ah, a vizinha nem queira saber a maravilha que é aquilo. A água está sempre quente, as praias todas limpas, não é pouca vergonha da Costa da Caparica. Outra coisa é que está sempre calor. Para o ano vou para lá outra vez. Mais vale dar mais qualquer coisinha e estar num lugar em condições. E então, a vizinha? Foi outra vez este ano para a Fonte da Telha?”
Bem ouvia depois as queixas da minha mãe para o meu pai:
“...deve, deve ter a mania que é mais que as outras.”
Mas fossem como fossem as ambições de cada um, a Fonte da Telha tinha cinema de barraca onde pude apreciar os loucos filmes de terror do fim dos anos 80 e especialmente, o Exorcista, que não é desse período, mas que teve o mérito de me iniciar na roda viva das insónias:
“Então, não dormes? Raios partam o miúdo que não prega olho à uma semana.”
E além do cinema, a Fonte da Telha tinha a insuspeita ciência da escolha do melão.
A base desta ciência é que é uma erudição completamente fora do alcance das mulheres. Toda a gente naquela terra partia deste dogma. Neste contexto, eram os homens que assumiam a compra do melão. Abanavam, calcavam, batiam, ouviam e escolhiam. Todo este ritual era sempre acompanhado pelos filhos que observavam com atenção os passo dos progenitores. Dizia-me o meu:
“Quando ouvires este som oco, assim como este, tás a ouvir? Então é porque o melão está maduro. Não tem nada que enganar.”
Mas o Sr. Ilídio, o pai do Nuno, tinha opinião contrária:
“Não senhor, o som oco, pelo contrário, quer dizer que o melão nem para ao passáros serve.”
Qual deles tinha a razão nunca ninguém o soube. Mas posso garantir que para a mesa tanto vinham melões verdes como maduros. No entanto quando eram verdes, o meu pai, e contra a opinião generalizada da família, afirmava:
“Este melão não está bom? Mas vocês estão a gozar comigo? Este melão é delicioso. Não percebem nada disto. Para a próxima escolhem vocês.”
E depois começava a comer fatias feito parvo até não sobrar nenhuma.
“Tava mesmo bom o raio do melão.”
Mas isto tudo a propósito da Mafalda ter parado o carro quando vínhamos da praia porque tinha visto uma barraca de melões à beira da estrada:
“Escolhe-me aí um melão. Percebes alguma coisa disso? Mas olha que é a sobremesa do jantar que vos vou oferecer lá em casa.”
Olhei-a de lado, ofendido, peguei num melão ao calhas e comecei a bater-lhe:
“Tás a ouvir este som oco? Cada vez que o ouvires é porque o melão é bom. Não tem nada que enganar. Por acaso sempre soube escolher melões.”
A Mafalda convenceu-se da minha sapiência e nem sequer desconfiou o que lhe é raro.
Comido o jantar, ela abriu o melão e a mesa ficou silenciosa:
“Dizes tu que sabes escolher melões, bela porcaria o que escolheste.”
Peguei numa fatia e comi-a deslumbrado:
“Querem vocês dizer-me que este melão não presta, é isso? Está delicioso. Mas para a próxima escolhem-no vocês. Agora a sério, não querem? Vocês é que sabem, mais fica para mim. Um melão tão bom...”
1 Comments:
Já não há newsletter????
Como vou saber quando vir aqui?
tá mal.
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