quarta-feira, setembro 21, 2005

Praia I

Infelizmente para todos, finalizei esta semana as minhas férias e estou cheio de entusiasmo para continuar mais um ano à frente deste desacreditado blog que se vem esforçando em dilapidar o mais requintadamente possível o precioso tempo às pessoas que teimam em o consultar. Não sei porque razão o fazem, mas também não me cabe a mim desvendar o enigma. Até porque, se houve pessoas que viram até ao fim o debate entre o Carrilho e o Carmona, porque razão não há-de haver gente suficientemente enfastiada para ler o meu blog diariamente? A sensação que se tem numa coisa e noutra deve ser a mesma, ou pelo menos deve andar lá muito perto.
Voltando às minhas férias. Estes quinze dias de descanso, passei-os confortávelmente no sofá lá de casa onde pude passar pelas brasas durante horas e horas seguidas como se tivesse sido mordido por uma colossal mosca Tsé Tsé. Muitas vezes saía da cama do quarto, pegava no comando da televisão, e ia logo direitinho deitar-me no sofá. Não há nada na vida meus amigos, que supere o sofá e a televisão.
Não fosse a alarmante consciência dos meus amigos que teimam, sabe-se lá porquê, em meditar no que é melhor para mim e para a minha estabilidade emocional, passava estas férias que era uma maravilha. Mas não, apareceram-me um dia lá em casa, vindos do nada para, segundo os próprios, ir um “bocadinho” à praia com eles.
Conhecedor dos intricados meandros do comportamento humano, vi logo que o bocadinho mencionado no convite iria revelar-se uma eternidade e claro que, mais uma vez, não me enganei.
“Anda lá connosco? Qual é a tua? Tens que ir à praia pelo menos uma vez este ano. Tens de apanhar cor. Tás tão branco que até faz impressão. Além do mais não me digas que preferes estar aí deitado no sofá o dia inteiro?”
Amuei como um bebé:
“Eu não gosto de praia deixem-me em paz. Além do mais, sim, prefiro estar deitado aqui no sofá que deitado na areia onde os putos e os cães mijam. Deixem-me em paz! Deixem-me em paz! Não quero sal na pele nem quero me besuntar com protector solar. Quero ficar aqui e além disso o Benfica joga ao fim da tarde. Obrigado pelo convite na mesma. Além do mais não tenho protector. Odeio praia e tudo aquilo que representa. Nada é melhor neste momento do que este sofá. Deixem-me.”
Foi então que a Mafalda, mulher de atributos físicos e emocionais muito acima das exigências de qualquer um entrou na conversa:
“Eu empresto-te o meu. Vá, se fores connosco até te ponho o creme nas costas.”
Lá me deu a volta. Eu fui, mas fui de nariz entortado porque não gosto cá que me pressionem, nem que usem a sexualidade para me convencerem a fazer coisas que eu não quero. Não me convidem para a praia raios.
Mas na verdade, e nestas coisas há que ser sincero, o argumento que me matou, foi a hipótese de ver a Mafalda em fato de banho, coisa que só conhecia de ouvir falar, mas devido aos excelentes comentários dos machos mais próximos e cuja opinião nestas coisas muito prezo, decidi, pois, arriscar uma ida ao areal para me certificar da veracidade do mito. Uma vida são dois dias e há que aproveitar enquanto Deus nos der estas hipóteses. Fui, portanto, a viagem toda a pensar em nádegas baloiçantes que, bem vistas as coisas, é o único ponto positivo duma ida à praia.
Se calhar elevei demasiado as expectativas. Seja como for, nestas coisas de tão impuro recalcamento, o melhor mesmo, é confirmar os factos com os próprios olhos.
“Tá uma ventania tão desagradável... Não, decididamente não foi o melhor dia para vires à praia, Hugo. Se soubesse que ia ser assim nem te tinha convidado. Vê lá que está tanto frio que hoje nem sequer vou tirar as calças. Até escusas de usar o protector solar.”

terça-feira, setembro 20, 2005

Praia II

Não gosto de praia e pronto.
Nesse dia em particular então, estava uma ventania do caraças. Passei duas horas a levar com rajadas de vento na tromba acompanhadas de sacos de plástico, areia, chapéus de sol e guardanapos de papel. Pode parecer mentira, mas até uma nojenta fatia de fiambre da pá esbarrou peganhenta nas minhas costas.
É a crise. Vão as donas de casa ao supermercado e pedem:
“Quero 100 gramas de fiambre, deste da pá, mas corte-mo fininho se faz favor...mais fino por favor...isso, assim está bem. É para levar para a praia.”
Ainda por cima, tiveram a real lata de ma vir pedir de volta.
“O senhor não se importa que lhe tire essa fatia de fiambre das suas costas. É que o meu mais novo, coitado, quer comer uma sande mista e só tenho aqui uma fatia de queijo...”
Uma das coisas que mais me incomoda é que uma pessoa na praia está demasiadamente exposta. Depois dum ano a escrever para este inarrável blog, foram muitos aqueles a quem a minha presença suscitou curiosidade, especialmente crianças que teimavam em me atirar areia, baldes e ancinhos cada vez que eu saía da água, coisa que me desconfortou imenso, mas que fez as delícias dos mais graúdos.
“Ó João não atires areia ao senhor. É tão esperta a criança e olhe que só tem três anos...desculpe!”
A maré estava tão farta e o espaço entre as pessoas era tão escasso que sentia facilmente o cheiro a suor do gajo que estava ao meu lado. Um pançudo de bigode ordinário e de pêlos no peito e ouvidos que tinha aspecto de dar pancada na mulher quando as coisas não lhe corriam pelo melhor.
Era uma família de emigrantes que apregoavam alarvemente um francês convicto. Não fosse o pançudo a estar calmamente a ler a Bola, até podiam, à primeira vista, passar por franceses. Então quando o telemóvel tocava, uh lá lá!
“Bien...voudrais...oui, oui...je suis...madame...”
A paz balnear desta família era, contudo, sobressaltada, de tempos em tempos, pelo incómodo desassossego do filho. A mãe ainda o avisava:
“Viens ici Jean Philippe ! Viens ici...”
E o Jean Philippe nada. Ou melhor, na mesma.
“Viens ici Jean Philippe. J’ai dejá dit...”
E o Jean Philippe nada
“Viens ici Jean Philippe au moi te claque...”
E o Jean Philippe nada. Chamou o marido ao barulho:
“Dis à ton fils qu’il arrête avec ça.”
Foi então que o pai, visivelmente aborrecido, tira os olhos da Bola e cospe de raiva:
“Tais toi Jean Philippe que je vais te claquer nos cornos que te fodo. Cabrão de merde.”

segunda-feira, setembro 19, 2005

Praia III

Para mim, praia faz-me lembrar o melão. Não o cantor, benza-o Deus, mas o fruto.
Quando era pequeno passava um mês inteiro na Fonte da Telha. Era um lugar horrível para se fazer férias, sem condições nenhumas, com ruas pejadas de lama, mas que era o refúgio de todos aqueles que não tinham dinheiro para ir para o Algarve. Há uns 15 anos atrás, se bem se lembram, ir para o Algarve era a mesma coisa que chegar o céu depois da morte. Era um símbolo de Status que todos ambicionavam, um pouco como há meia dúzia de anos eram os telemóveis. Ainda me recordo na alegria das pessoas quando iam lá para baixo. Claro que, num meio proletariado e mal pago, quem conseguisse poupar uns cobres para ir lá para baixo sentia-se o rei do mundo, subia-lhe o Status logo à cabeça que era uma maravilha. As mulheres, como seria de esperar, aproveitavam logo a deixa:
“Este ano vou para o Algarve. Estou farta da Fonte da Telha.”
E quando voltavam:
“Ah, a vizinha nem queira saber a maravilha que é aquilo. A água está sempre quente, as praias todas limpas, não é pouca vergonha da Costa da Caparica. Outra coisa é que está sempre calor. Para o ano vou para lá outra vez. Mais vale dar mais qualquer coisinha e estar num lugar em condições. E então, a vizinha? Foi outra vez este ano para a Fonte da Telha?”
Bem ouvia depois as queixas da minha mãe para o meu pai:
“...deve, deve ter a mania que é mais que as outras.”
Mas fossem como fossem as ambições de cada um, a Fonte da Telha tinha cinema de barraca onde pude apreciar os loucos filmes de terror do fim dos anos 80 e especialmente, o Exorcista, que não é desse período, mas que teve o mérito de me iniciar na roda viva das insónias:
“Então, não dormes? Raios partam o miúdo que não prega olho à uma semana.”
E além do cinema, a Fonte da Telha tinha a insuspeita ciência da escolha do melão.
A base desta ciência é que é uma erudição completamente fora do alcance das mulheres. Toda a gente naquela terra partia deste dogma. Neste contexto, eram os homens que assumiam a compra do melão. Abanavam, calcavam, batiam, ouviam e escolhiam. Todo este ritual era sempre acompanhado pelos filhos que observavam com atenção os passo dos progenitores. Dizia-me o meu:
“Quando ouvires este som oco, assim como este, tás a ouvir? Então é porque o melão está maduro. Não tem nada que enganar.”
Mas o Sr. Ilídio, o pai do Nuno, tinha opinião contrária:
“Não senhor, o som oco, pelo contrário, quer dizer que o melão nem para ao passáros serve.”
Qual deles tinha a razão nunca ninguém o soube. Mas posso garantir que para a mesa tanto vinham melões verdes como maduros. No entanto quando eram verdes, o meu pai, e contra a opinião generalizada da família, afirmava:
“Este melão não está bom? Mas vocês estão a gozar comigo? Este melão é delicioso. Não percebem nada disto. Para a próxima escolhem vocês.”
E depois começava a comer fatias feito parvo até não sobrar nenhuma.
“Tava mesmo bom o raio do melão.”
Mas isto tudo a propósito da Mafalda ter parado o carro quando vínhamos da praia porque tinha visto uma barraca de melões à beira da estrada:
“Escolhe-me aí um melão. Percebes alguma coisa disso? Mas olha que é a sobremesa do jantar que vos vou oferecer lá em casa.”
Olhei-a de lado, ofendido, peguei num melão ao calhas e comecei a bater-lhe:
“Tás a ouvir este som oco? Cada vez que o ouvires é porque o melão é bom. Não tem nada que enganar. Por acaso sempre soube escolher melões.”
A Mafalda convenceu-se da minha sapiência e nem sequer desconfiou o que lhe é raro.
Comido o jantar, ela abriu o melão e a mesa ficou silenciosa:
“Dizes tu que sabes escolher melões, bela porcaria o que escolheste.”
Peguei numa fatia e comi-a deslumbrado:
“Querem vocês dizer-me que este melão não presta, é isso? Está delicioso. Mas para a próxima escolhem-no vocês. Agora a sério, não querem? Vocês é que sabem, mais fica para mim. Um melão tão bom...”